Autismo na vida adulta: Diagnóstico tardio, máscaras sociais e o caminho para a compreensão

Embora o autismo seja um transtorno do neurodesenvolvimento presente desde os primeiros anos de vida, um número crescente de adultos só descobre que é autista na fase adulta, muitas vezes após os 30 ou 40 anos. Esse diagnóstico tardio não é raro — e sim, consequência de décadas de lacunas na pesquisa científica, critérios diagnósticos enviesados e falta de conhecimento especializado sobre as manifestações mais sutis do espectro, especialmente entre mulheres.

Critérios masculinos, diagnósticos incompletos

Historicamente, os critérios diagnósticos do Transtorno do Espectro Autista (TEA) foram moldados com base em estudos com meninos. Esses estudos privilegiaram sinais mais “típicos”, como comportamentos repetitivos, interesses restritos e dificuldades sociais evidentes. No entanto, muitas meninas e mulheres autistas apresentam sinais mais discretos e internalizados, o que contribui para o mascaramento — a habilidade de adaptar comportamentos e esconder traços autistas para se adequar às normas sociais.

Estudos apontam que cerca de 80% das mulheres autistas não são diagnosticadas até a fase adulta. Uma pesquisa de 2020 publicada no Journal of Autism and Developmental Disorders identificou que mulheres são diagnosticadas, em média, 4 anos mais tarde que homens, mesmo apresentando sintomas desde a infância.

Máscaras sociais e o esgotamento emocional

O mascaramento, ou camuflagem social, é um fenômeno comum entre adultos autistas, especialmente mulheres. Essa estratégia inclui o esforço consciente (ou inconsciente) de imitar comportamentos neurotípicos: manter contato visual, forçar expressões faciais esperadas, imitar padrões de fala ou suprimir estereotipias (como balançar o corpo ou repetir movimentos).

Embora o mascaramento permita algum grau de adaptação, ele tem um custo alto. Um estudo britânico de 2019 publicado na Autism Research associou a camuflagem prolongada ao aumento do risco de depressão, ansiedade e esgotamento emocional, especialmente em mulheres sem diagnóstico formal. Além disso, esse esforço constante pode dificultar o acesso a um diagnóstico correto e atrasar o apoio necessário.

A sensação persistente de ser “diferente”

Muitos adultos autistas relatam uma sensação constante de inadequação social, desde a infância. Sentem-se “de fora”, mesmo em ambientes familiares, e frequentemente não compreendem as regras sociais não ditas que regem as interações humanas. Mesmo com tentativas persistentes de adaptação, esse sentimento de alienação emocional e social persiste, gerando frustração e dúvidas sobre sua própria identidade.

Esse desconforto é frequentemente minimizado por familiares, professores ou médicos ao longo da vida, o que contribui para o apagamento da identidade autista e para o adiamento do diagnóstico.

Interesses específicos: Muito além de hobbies

Outra característica marcante no TEA são os interesses específicos e intensos. Em adultos autistas, esses focos podem se tornar áreas de expertise e representar uma fonte de prazer, estabilidade e identidade. Esses interesses — que podem variar de astronomia à arte bizantina, de línguas raras a trilhos ferroviários — funcionam como âncoras emocionais em um mundo frequentemente imprevisível e caótico.

Tentar introduzir esses temas em conversas sociais é uma maneira de buscar conexão, mas muitas vezes são vistos como “excêntricos” por quem desconhece o espectro. No entanto, especialistas defendem que essas paixões deveriam ser mais valorizadas como canais legítimos de expressão e socialização.

Desafios nas Interações Sociais e a Exaustão Pós-Contato

As dificuldades com contato visual, leitura de expressões faciais e compreensão de ironias ou subentendidos permanecem mesmo após anos de prática social. Para muitos adultos autistas, interações sociais exigem uma espécie de atuação contínua, o que leva à chamada fadiga social. Após eventos sociais, muitos relatam a necessidade urgente de ficar sozinhos, em silêncio, para recarregar as energias.

Esse padrão de retração social pós-exposição não é antissociabilidade, mas sim um mecanismo de autorregulação emocional, comum no espectro.

A importância vital da rotina

Outro pilar fundamental para o bem-estar de adultos autistas é a previsibilidade. Rotinas claras, ambientes organizados e ausência de surpresas proporcionam segurança emocional e reduzem a ansiedade. Por outro lado, mudanças inesperadas no dia a dia — como uma alteração de horário ou mudança de planos — podem gerar crises emocionais intensas, conhecidas como meltdowns, caracterizadas por sobrecarga sensorial e emocional.

Essa necessidade de estabilidade é muitas vezes mal interpretada como rigidez ou inflexibilidade, mas reflete a forma como o cérebro autista processa informações.

Sinais físicos e neurológicos: O que diz a Ciência

Estudos recentes vêm explorando aspectos biológicos do autismo. Um artigo publicado na Frontiers in Neurology utilizou eletromiografia de superfície (sEMG) para analisar a fala de adultos autistas minimamente verbais. Os resultados apontaram maior ativação muscular e menor complexidade na coordenação motora da fala, sugerindo que dificuldades motoras podem ser uma base física concreta dos desafios comunicativos no espectro.

Outro estudo, de 2023, da Universidade de Bristol, indicou que níveis elevados de ácidos graxos no sangue do cordão umbilical podem estar associados à gravidade dos sintomas do TEA, com efeitos mais pronunciados em meninas. Isso reforça a hipótese de que fatores biológicos interagem de forma distinta entre os sexos, o que pode explicar parte do subdiagnóstico feminino.

O Papel da conscientização e do diagnóstico precoce

Para mudar esse cenário, é fundamental investir em conscientização, formação de profissionais de saúde e revisão dos critérios diagnósticos. A validação da experiência autista em sua diversidade é essencial para que adultos que hoje vivem sem diagnóstico possam encontrar respostas para as dificuldades que enfrentaram por toda a vida.

O diagnóstico não é um rótulo: é uma ferramenta de compreensão e acolhimento. Saber que se está no espectro permite o acesso a terapias, comunidades de apoio e estratégias de adaptação que melhoram significativamente a qualidade de vida.

Conclusão: Caminho para uma sociedade mais inclusiva

Reconhecer o autismo em adultos é uma questão de saúde mental, justiça social e dignidade. Cada história de diagnóstico tardio é também uma história de resistência, de pessoas que sobreviveram à margem das classificações clínicas e agora buscam, com coragem, reconstruir suas identidades. Ouvir essas vozes, respeitar suas vivências e promover ambientes mais acessíveis é o próximo passo para uma sociedade verdadeiramente neurodiversa.

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