Morre Niède Guidon, pioneira da arqueologia brasileira e guardiã da Serra da Capivara

Morreu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos, a arqueóloga Niéde Guidon, uma das maiores referências da ciência brasileira e protagonista de uma revolução no entendimento sobre a presença humana nas Américas. A pesquisadora dedicou mais de meio século à região do Parque Nacional da Serra da Capivara, no semiárido piauiense, onde liderou escavações e descobertas que mudaram os rumos da arqueologia mundial.

Uma vida dedicada à ciência e ao Brasil

Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, Niéde Guidon formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) e concluiu seu doutorado em Arqueologia na Sorbonne, em Paris, na década de 1970. Foi ainda professora e pesquisadora em instituições da França e do Brasil, e trabalhou no Museu de História Natural de Paris antes de retornar definitivamente ao Brasil, em 1978.

Foi em solo piauiense, no município de São Raimundo Nonato, que ela encontrou sua missão de vida: proteger e estudar os sítios arqueológicos da Serra da Capivara, um verdadeiro tesouro de pinturas rupestres, fósseis e artefatos que narram uma história de mais de 50 mil anos de presença humana no território que hoje chamamos de América do Sul.

A teoria que desafiou o mundo

Ao lado de uma equipe multidisciplinar, Niéde liderou pesquisas que encontraram vestígios humanos — como ferramentas de pedra lascada, fogueiras e pinturas rupestres — datados de até 60 mil anos atrás. Isso contrariava a teoria mais aceita até então, que situava a chegada do Homo sapiens às Américas por volta de 12 mil anos atrás, pelo Estreito de Bering.

A hipótese defendida por Niéde foi recebida com ceticismo por parte da comunidade científica, especialmente nos Estados Unidos, mas também provocou uma reavaliação crítica sobre os caminhos migratórios dos primeiros humanos. Com coragem intelectual e base científica sólida, ela manteve suas convicções até o fim da vida.

Preservação e resistência no sertão

Mais do que escavar o passado, Niéde lutou para preservar o presente e garantir o futuro do patrimônio arqueológico brasileiro. Fundou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) em 1986, com apoio de universidades francesas, brasileiras e organismos internacionais. Foi responsável por transformar a Serra da Capivara em Parque Nacional e, mais tarde, Patrimônio Cultural da Humanidade reconhecido pela UNESCO em 1991.

Mesmo diante de sucessivos cortes de verbas, abandono do Estado e ameaças à conservação dos sítios, Guidon nunca desistiu. Até seus últimos anos de vida, denunciava a negligência do poder público e cobrava investimentos em infraestrutura, segurança e educação ambiental para a região.

A Serra da Capivara é um patrimônio do mundo, não apenas do Brasil”, afirmava com convicção. Para ela, a ciência deveria estar a serviço do desenvolvimento humano e da valorização cultural dos povos.

Impacto social e legado eterno

Graças ao trabalho de Niéde Guidon, a cidade de São Raimundo Nonato deixou de ser uma localidade isolada para se tornar um polo de turismo científico, arqueológico e ecológico. Sua atuação impactou diretamente gerações de estudantes, pesquisadores e moradores da região. Implantou escolas, capacitou profissionais locais e estimulou a economia com a criação de centros de visitantes, museus e oficinas culturais.

A pesquisadora também foi agraciada com diversas honrarias, como a Ordem Nacional do Mérito Científico, a Légion d’Honneur da França, e dezenas de prêmios e homenagens no Brasil e no exterior. Foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz em 2020, como símbolo da luta pela proteção do patrimônio da humanidade.

Despedida de uma gigante

Niéde Guidon deixa um legado imensurável para a ciência, a cultura e a história do Brasil. Sua paixão pela arqueologia, sua coragem frente à adversidade e seu compromisso com a verdade científica inspiram e continuarão a inspirar gerações.

Seu nome está eternamente gravado nas rochas da Serra da Capivara, nas mãos dos jovens cientistas que ela ajudou a formar e nos corações de todos que acreditam em um país que valorize seu passado para construir um futuro melhor.

“A humanidade precisa saber de onde veio, para entender quem é e para onde pode ir.”
— Niéde Guidon

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