Apesar de estar formalmente abolida desde 1888, a escravidão ainda resiste no Brasil sob novas formas — mais disfarçadas, porém igualmente cruéis. O trabalho análogo à escravidão é uma realidade cotidiana para milhares de brasileiros e representa uma das mais graves violações dos direitos humanos no país.
Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, só em 2023 mais de 3 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão, o maior número registrado desde 2009. A maioria desses casos ocorre em atividades rurais, como a pecuária, a produção de carvão vegetal e a colheita de grãos, mas o problema também se estende às áreas urbanas, especialmente na construção civil e no setor têxtil.
O trabalho escravo contemporâneo não envolve mais correntes ou grilhões, mas sim dívidas fraudulentas, jornadas exaustivas, condições degradantes e isolamento forçado. Muitos trabalhadores são aliciados por “gatos” — intermediários que oferecem falsas promessas de emprego — e acabam presos em fazendas e canteiros de obras, sem acesso a direitos básicos, como água potável, descanso e salário digno.
A região Sudeste lidera o ranking de denúncias, com destaque para o estado de Minas Gerais, que registrou cerca de 30% dos casos de resgate em 2023. Mas o Norte e o Centro-Oeste também apresentam números alarmantes, refletindo uma prática disseminada e estrutural.
Atualização – Piauí tem 32 registros na “Lista Suja” do trabalho escravo
O Ministério do Trabalho e Emprego divulgou a lista atualizada dos empregadores que foram flagrados submetendo trabalhadores à situação análoga à de escravidão. A lista, que é atualizada duas vezes por ano, traz 745 registros, desses, 32 são de empregadores localizados no Piauí. De acordo com os dados, cinco nomes foram incluídos nesta última atualização.
Juntos, os 32 registros contabilizam 295 trabalhadores envolvidos em situação análoga à de escravidão. A maioria dos trabalhadores atuam em pedreiras, mas também foram resgatados trabalhadores nas atividades nos carnaubais, fazendas e ainda uma trabalhadora doméstica. Quinze registros foram incluídos ainda em 2023 e 12 incluídos em 2024. Depois que o nome do empregador é incluído no Cadastro, ele permanece na lista por dois anos, conforme o art. 3ª da Portaria Interministerial que regula a “Lista Suja”.
Para o procurador do Trabalho Edno Moura, coordenador regional de Combate ao Trabalho Escravo no MPT-PI, a lista é uma ferramenta importante para dar mais transparência em relação aos empregadores que submetem trabalhadores a situação de escravidão. “Temos intensificado as fiscalizações e conseguido reduzir bastante o número de trabalhadores resgatados. No entanto, ainda há aqueles que insistem em reduzir trabalhadores a condições de escravos e eles devem ser punidos porque isso é crime. É uma grave violação de direitos e o Ministério Público do Trabalho está atuando, juntamente com outros órgãos, para coibir e punir essa prática”, pontuou, lembrando que o Piauí saltou de 180 trabalhadores resgatados em 2022 para 14 em 2024.
Vale destacar que a inclusão dos empregadores na lista não ocorre de forma automática. Durante as fiscalizações, quando são encontrados trabalhadores em condições análogas à escravidão, são registrados autos de infração para cada irregularidade trabalhista identificada. Além disso, é lavrado um auto de infração específico que descreve a situação de trabalho análogo ao de escravo. Cada auto dá origem a um processo administrativo, no qual os empregadores têm garantidos seus direitos de defesa, podendo apresentar argumentos e recorrer em duas instâncias.
A inclusão de pessoas físicas ou jurídicas no Cadastro de Empregadores só acontece após a conclusão do processo administrativo que analisou o auto de infração por trabalho análogo ao de escravo. Para que o nome seja incluído, é necessário que a autuação tenha sido considerada válida em decisão final, sem possibilidade de recurso.
Os trabalhadores estavam atuando em 27 municípios: Flores, Canto do Buriti, Jerumenha, Castelo do Piauí, Elizeu Martins, Batalha, São João da Serra, Uruçuí, Isaías Coelho, Monte Alegre do Piauí, Campo Maior, Altos, Currais, Regeneração, Amarante, Gilbués, Teresina, Buriti dos Lopes, Boa Hora, Piripiri, Amarante, Piracuruca, Monsenhor Gil, Rio Grande do Piauí, Palmeira, Cajueiro da Praia e Itainópolis.

A população pode contribuir com o trabalho de fiscalização dos órgãos para ajudar a combater o trabalho escravo. As denúncias podem ser feitas de maneira anônima e/ou sigilosa, em qualquer uma das unidades do MPT, na capital e interior, pelo site no www.prt22.mpt.mp.br/servicos/denuncias, pelo WhatsAPP (86) 995447488, ou ainda pelo no Sistema Ipê, sistema lançado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Clique aqui para acessar a lista.
Fiscalização
O governo federal tem reforçado os esforços de fiscalização, com a atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, que contam com auditores, procuradores e policiais. Ainda assim, os recursos são insuficientes diante da extensão territorial do Brasil e da sofisticação dos mecanismos de exploração.
É inaceitável que, em pleno século XXI, o Brasil ainda figure entre os países que mais registram casos de trabalho escravo contemporâneo. A persistência dessa prática não é apenas uma herança do passado colonial, mas também reflexo de um presente negligente, onde a desigualdade social e a impunidade alimentam a perpetuação da barbárie.
Mais do que combater os sintomas, é preciso atacar as raízes. Isso significa investir em educação, gerar oportunidades dignas de trabalho, punir severamente os empregadores infratores e conscientizar a sociedade de que nenhum produto barato compensa a vida e a dignidade humana.
Se o Brasil quer, de fato, se consolidar como uma democracia justa, não pode continuar tolerando que trabalhadores sejam tratados como escravos. A liberdade, afinal, não pode ser privilégio — deve ser um direito garantido a todos.
Produção e edição: Damata Lucas – Imagem: IA Chat